domingo, 9 de outubro de 2011

Mário Sérgio Duarte: "Eu tinha de pedir para sair. O fracasso é meu"

O ex-comandante geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro fala do quarto do hospital a ÉPOCA

RUTH DE AQUINO
Examinado por dois médicos, convalescendo de uma cirurgia de próstata no quarto do Hospital Central da PM, ainda em dores, mas feliz porque a biópsia acabara de dar resultado negativo, o coronel Mário Sérgio Duarte, 53 anos, conversou com Ruth de Aquino, de ÉPOCA, sobre os motivos que o levaram a deixar o comando-geral da PM na noite de quarta-feira (28), e falou também sobre os desafios enfrentados nas Unidades de Polícia Pacificadora (as UPPs) e na Segurança nos últimos meses.

“Estou triste por interromper um trabalho na primeira Secretaria de Segurança do Estado do Rio que aposta na vida e não gratifica a morte. Mas feliz por ter feito o que me cabia. Todo servidor precisa ter responsabilidade. Se os louros do sucesso podem ser divididos, os fracassos são do gestor e fui eu quem tirou o tenente-coronel Cláudio Luiz Silva de Oliveira da área administrativa e apostou nele para comandar o 7º Batalhão de São Gonçalo.”
Cláudio Luiz é acusado de ser o mentor do assassinato da juíza Patrícia Acioli, no dia 11 de agosto.
Ex-comandante do Bope, Mário Sérgio – que estava no comando geral da PM desde 8 de julho de 2009 – disse que agora vai concluir o curso superior de Filosofia e cuidar de seus seis filhos, entre eles “um casalzinho de gêmeos de oito meses”, do segundo casamento, “um presente de Deus”.
Mário Sérgio Duarte, ex comandante-geral exonerado da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Foto: Fabiano Rocha / Agência O Globo)Mário Sérgio Duarte, ex comandante-geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Foto: Fabiano Rocha / Arquivo/Agência O Globo)
ÉPOCA – Sua saída do comando geral da PM era absolutamente necessária?

Mário Sérgio Duarte – Sim, com certeza. Era um imperativo categórico moral. Sabe por quê? Porque a escolha do coronel Cláudio, que eu tirei de um cargo administrativo no Hospital de Niterói para colocar no comando do Batalhão de São Gonçalo, foi responsabilidade minha. Fui eu que o tirei da área interna para a área operacional em outubro do ano passado. Era a minha terceira tentativa de reduzir os índices de violência da região, que só aumentavam. O batalhão comandado por ele reduziu tanto o índice de homicídios e roubos que, por ironia do destino, foi um dos batalhões premiados pelo governo do Estado com bônus, em cerimônia há cerca de duas semanas.
ÉPOCA – O senhor acha que o gestor direto de um suspeito de assassinato deveria seguir sempre seu exemplo?

Duarte – Eu não quero ser exemplo de nada nem quero bancar o modelo máximo da moralidade. Mas, se o coronel Cláudio é acusado de um crime bárbaro, de mandar matar uma pessoa sem nenhuma possibilidade de se defender, aí a minha responsabilidade é a primeira a ser apresentada. Todos podemos dividir os louros dos acertos. Mas os erros são de quem comanda. O brasileiro está meio cansado de a responsabilidade ser sempre jogada no outro, em quem está abaixo. Quem está em cima nunca sabe de nada, não viu, desconhece tudo. Quem tem poder de decisão não pode se omitir. No meu cargo, eu escolhia os comandantes. Os fracassos são do gestor.
ÉPOCA – Sua exoneração não expõe ainda mais a falta de confiança na PM como corporação?

Duarte – Acho que é o inverso. Por mais que as polícias sejam criticadas, é justamente na polícia onde os responsáveis perdem as funções, são expulsos. Se você fizer um inventário em todos os Poderes, verá que nos outros há crimes, fatos vergonhosos, violações de protocolos, e quem está na chefia dificilmente é responsabilizado. Na PM, a gente expulsa, a gente tira do comando, pede para sair da função. Mas eu espero sinceramente só ser modelo para os meus seis filhos. Que sempre me ouviram dizer: ‘A semeadura é livre mas a colheita é obrigatória’. Não posso permitir que alguém duvide da política de segurança pública do Rio. Porque até hoje nunca tivemos no Estado do Rio uma política tão clara, de desconstrução do ódio, uma política que não valoriza a morte. Antigamente, oficiais trabalhavam num ambiente cultural que dizia ‘mate que vou te dar uma premiação, mate que você terá uma gratificação faroeste’. O derramamento de sangue era um valor. Eu vou aos batalhões, aliás, eu ia aos batalhões, para pedir: valorizem a vida porque quero que vocês voltem para casa e suas famílias.
ÉPOCA – Se o senhor não pedisse, acha que seria exonerado?

Duarte – Se eu não saísse, haveria uma dúvida sobre a lisura de nossos propósitos. Eu não poderia deixar dúvida sobre a competência da cúpula da Segurança.
ÉPOCA – O senhor era amigo pessoal do tenente-coronel Cláudio Luiz?

Duarte – Eu o conheço há 20 anos, fizemos o mesmo curso de operações especiais, e trabalhamos juntos no Bope. Não conheço os filhos dele, a esposa, não saíamos juntos. Essas são as relações internas de oficiais superiores, todo mundo se conhece. Também escolhi outros homens que tive de mudar ao longo do percurso, porque não cumpriram suas metas, ou porque deixaram dúvidas sobre suas intenções, ou porque gostavam de se exibir, fui tirando aqui e acolá.
ÉPOCA – Não foi arriscado nomear o coronel Cláudio para o Batalhão de São Gonçalo, se ele já tinha um problema com a juíza Patrícia Acioli?

Duarte – Eu não sabia disso quando eu o coloquei ali. Os dois tinham tido um problema no Maracanã há 20 anos. Ele prendeu a então defensora pública, e a teria levado à delegacia, ela entrou com um processo contra ele. Mas sou de opinião que coisas do passado devem ser resolvidas na concórdia, na conciliação. Vários oficiais premiados no passado por uma política errada das lideranças foram chamados para uma nova construção e um novo momento. Vou te dar um exemplo: hoje temos na Colômbia um processo que envolve a entrega das armas pelas forças que se viram envolvidas em confronto, por ideologia ou apenas crime. Quem se desmobiliza, se entrega, devolve suas armas, paga uma parcela de seus erros em troca da inserção social. O mesmo se pode dizer de traficantes. Se eu sou favorável à criação de uma legislação, uma iniciativa capitaneada pelo poder público, para reintegrar traficantes arrependidos à sociedade, por que não fazer o mesmo com a corporação, em vez de tratar um oficial que já cometeu abusos como um leproso institucional? Se a política do confronto pelo confronto empurrou tanta gente para seus estereótipos, é hora de atrair quem quer trabalhar para o bem comum. Claro, temos que ser prudentes como as serpentes e, se errarmos, temos de pedir para sair.
ÉPOCA – Dias depois do assassinato da juíza, o tenente-coronel Cláudio Luiz foi transferido para outro batalhão. Por quê? Não pesava nenhuma suspeita contra ele?

Duarte – No passado do coronel Cláudio, há processos nos quais ele foi absolvido. Na morte da juíza, ninguém suspeitava dele, até porque seu desempenho no comando do batalhão era considerado bom. O que eu fiz após a morte da juíza foi cumprir uma ação de rotina, mexi em 22 batalhões, é algo previsto a cada nove meses. Eu soube pela televisão da acusação a ele esta semana. Mandei imediatamente localizá-lo e conduzi-lo preso pelo batalhão de choque, mas ele mesmo se apresentou. Não temos sido nada condescendentes com desvios de conduta muito menores, quanto mais homicídio. Se eu ficasse no comando, a gente ia expulsar mais de 250 só neste ano de 2011.
ÉPOCA – O senhor acha que o tenente-coronel Cláudio Luiz é inocente, como alega?

Duarte – A posição do líder não pode ser a posição do advogado. O comandante não pode ficar assumindo posição de advogado de defesa ou promotor. Nós temos de facilitar as investigações. O meu papel não é fazer julgamento, análise ou defesa. E, se está sendo preso, é porque existem provas contra ele. Mas, mesmo que não se comprove na Justiça sua culpa no homicídio, vou estar tranquilo com a minha consciência. Perdi minha função e o único prejudicado com isso fui eu. O que eu não posso é levar prejuízo para a população ou para a Secretaria de Segurança ou para o capitão da nau, Mariano Beltrame.
ÉPOCA – Como o senhor se sente neste momento?

Duarte – Primeiro eu estou me sentindo como quem fez aquilo que lhe cabia ao pedir exoneração. Se a gente quer construir um serviço público melhor, um país melhor, a palavra que não pode nos abandonar, seja o servidor de que nível for, de que poder for, é responsabilidade. Eu me sinto feliz por ter participado de um processo que inaugurou uma nova filosofia na segurança, por ter se dado conta da gravidade da violência no Rio. Antigos governantes se dividiam em dois grupos. Ou eram os que atribuíam toda a violência a questões sociais, e aí citavam Marx e as lutas de classe para dizer que o bandido não passava de uma vítima da exploração capitalista. Esse grupo queria que tivéssemos uma segurança pública nos moldes de Londres. Ou eram os governantes que achavam que com o fuzil na mão e a disposição de luta, na base da guerra e da morte, matariam os bandidos e resolveriam a segurança. Nem lá nem cá. Conflito não se resolve assim.
ÉPOCA – A Segurança do Rio tem encarado recentemente alguns desafios sérios. Grupos de extermínio na PM, corrupção entre policiais pacificadores das UPPs, recém-formados, e a execução de uma juíza no estilo das máfias. O senhor acredita que possa ser uma ação organizada para desestabilizar o secretário Beltrame e o Estado?

Duarte – Nós sempre trabalhamos com a hipótese de que a UPP é um processo que vai ganhar consolidação com o tempo. O primeiro benefício está claro: a redução da letalidade, a libertação da população do jugo das leis cruéis do tráfico e das milícias. Quando a UPP foi idealizada, pensou-se em fases. A última fase é de monitoramento. Quantos homens, que tipo de equipamentos, análise das condutas morais dos policiais. Não dá para analisar a ação do policial em campo apenas por meio de abstrações e teorias. Esses são os desafios do mundo sensível. A gente fica achando que pode ter um policial com um comportamento apolíneo num mundo dionisíaco (uma referência ao deus Apolo, da harmonia, da luz e do sol; e ao deus Dionísio, das festas, do vinho e do prazer). Ele passa o tempo todo por tentações. É o dono do estabelecimento comercial que promete dar um franguinho no fim do dia, é o traficante que promete um ganho material.
ÉPOCA – Como evitar que policiais se corrompam, já que o tráfico continua ativo embora sem o controle do território?
 
Duarte – A grande maioria dos policiais está vacinada porque sabe que representa uma nova ordem uniformizada e barbeada, do bem, de proximidade com a população. E há a gratificação de R$ 500.
ÉPOCA – O que são R$ 500 diante das gratificações do tráfico, que paga dezenas de milhares de reais a quem cala e consente? A legalização de algumas drogas poderia, a seu ver, diminuir o poder corruptor do tráfico?

Duarte – Não sou favorável a legalização de drogas. Porque as drogas ilícitas estão represadas pelo dique da lei. As drogas que mais matam no mundo são o álcool, o tabaco, matam por acidentes, cirrose. Essas correm soltas sem o dique da legalidade. Receio que a sociedade passe a ter muito mais problemas de saúde. A compulsão da droga também incita o crime. O viciado acaba por dilapidar o patrimônio da família. A legalização poderia reduzir a corrupção nas comunidades, mas sempre aparecerá uma droga mais nociva e perigosa que será traficada. De qualquer modo, acredito que a sociedade deva discutir a legalização, para que se chegue a um consenso, especialmente no que se refere a drogas mais leves como a maconha.
ÉPOCA – O que o senhor pretende fazer agora?

Duarte – Acabar meu curso de Filosofia na UFRJ e cuidar dos meus filhos. E como eu acredito em questões metafísicas, acho que Deus me indicará depois o caminho.

Vida na Caserna

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