Polícia Civil, um sonho perdido

No item 1.1 (Descrição sumária das atividades) do edital do concurso, dizia:
"Detetive é o servidor policial que tem a seu cargo a investigação e coleta de elementos para elaboração de inquéritos e processos sumários, policiamento preventivo especializado, cumprimento de mandados, escolta de presos e investigação sobre paradeiros de pessoas desaparecidas (Art. 70 da Lei nº 5.406, de 16 de dezembro de 1969 - Lei Orgânica da Polícia Civil de Minas Gerais)."
Fui enganado! Até acabou-se com o
cargo de Detetive, mudando a denominação para Agente de Polícia.
Preferia muito mais o termo Detetive, que delimitava melhor a
especialidade da função e nos correlacionava com os Police Detectives
das outras forças policiais do mundo. Agente é um termo muito genérico e
que costuma ser referenciado aos agentes federais.
Pode-se dizer, pelo menos sob meu
ponto de vista, que a Polícia Civil já não é mais um órgão policial de
verdade. As delegacias foram transformadas em cartórios. "Você vai numa
delegacia e o que menos vai encontrar são policiais correndo atrás de
criminosos. Eles ficam lá batendo carimbo e preocupados com prazos e
procedimentos legais. Há um formalismo que não tem nada a ver com o
problema criminal." (comentário realizado pelo sociólogo Claudio Beato,
diretor do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança da UFMG em
entrevista com o jornal Folha de São Paulo em 10/11/2008.)
Os governantes ainda só estão
preocupados com números e não com a qualidade do serviço. Realiza-se
muito mais em termos de quantidade, voltando-se para as atividades
internas de intimar, ouvir e remeter o mais breve possível o
procedimento à justiça, do que se empenhar na qualidade dos serviços
externos de investigações, investigação de campo.
Nos distritos, as delegacias
operacionais, normalmente têm cerca de 800 a 1000 inquéritos em trâmite,
sem contar as centenas de REDS (Registros de Eventos de Defesa Social) e
de TCOs (Termos Circunstanciados de Ocorrência). Os poucos policiais
civis ocupam a maior parte do tempo atendendo ao público para registrar
suas ocorrências, na grande maioria das vezes tratando-se de simples
perda de documentos ou de objetos que não é motivo para gerar uma
investigação, redigindo e protocolando documentos e deslocando-se para
realizar intimações ou encaminhar inquéritos e outros expedientes à
outras unidades. Os trabalhos ficam por conta dos escrivães ou dos
agentes desviados de sua função que irão apenas ouvir os relatos e
depoimentos, reunir as informações e encaminhar ao poder judiciário.
Pois é, acabaram-se as cadeias nas delegacias e os policiais civis
deixaram de tomar conta de presos para tornarem-se "office boys" da
justiça. Não há investigação. Investigação mesmo, havendo levantamento,
coleta de evidências, campanas nos locais de ocorrências de crime,
cruzamento de informações, filmagem ou fotografia, escuta, etc.: nada.
Nas delegacias especializadas é ainda
pior, pois, só no caso da homicídios, são geralmente 80 inquéritos, ou
seja, 80 homicídios, para cada agente, por mês. E todos com prazo. É
praticamente impossível de se investigar corretamente. Muitos acabarão
não sendo investigados se acumulando.
Atualmente, quase que a totalidade das
prisões realizadas, principalmente durante os plantões, são feitas pela
Polícia Militar através de ocorrências ou até mesmo por meio de
investigações realizadas pela inteligência desta (P2). Difícil ver uma
prisão feita por uma investigação iniciada e concluída pela própria
Polícia Civil.
Algumas vezes há sim uma certa
investigação que gera uma operação policial e que acaba resultando na
prisão de criminosos. Mas pode apostar que houve um interesse particular
ou pressão política ou social para isso. Outras vezes há uma pequena
operação, para fazer propaganda sabe, mostrar a comunidade que a polícia
"está trabalhando" e que geralmente não resulta em prisão nenhuma,
afinal não houve levantamento, não houve investigação. Foi só pra inglês
ver.
Por outro lado, em várias unidades de
apoio tático da PC e em determinadas unidades administrativas, os
policiais civis sofrem com o tédio. Ficam ociosos grande parte do tempo e
são impedidos ou não têm competência para investigar nem um mísero
furto que esteja acontecendo frequentemente próximo às suas unidades.
Acabou aquele tira bom de serviço que
só vivia nas ruas ou dentro da viatura. Que estava atento a tudo que
ocorresse nas ruas. Que tendo vários informantes, sabia quase tudo.
Aquele que virava as noites e ficava altas horas da madrugada de campana
para saber o que um suspeito estava aprontando ou iria aprontar. Que
estava pronto a qualquer hora do dia ou da noite pro que der e vier,
para uma operação ou para fazer uma prisão. Aquele polícial 24 horas que
não tinha medo de "bronca", que não tinha medo de nada. Que, orgulhoso
do distintivo, gritava: "POLÍCIA! PERDEU, PERDEU. MÃOS NA CABEÇA E
ENCOSTA NA PAREDE. A CASA CAIU, TÁ PRESO!"
Hoje o tira bom é aquele servidor,
preferencialmente submisso, que entende de informática ou o polícial de
escritório, nos moldes do funcionário público: cumpridor de horário, que
chega à repartição exatamente às 08:30h; senta-se em frente à mesa ou
ao computador; permanece ali o dia inteiro, pausando de vez em quando
para tomar um café ou bater um papo; pára ao meio-dia em ponto para o
almoço; retorna pontualmente as 14h; senta-se denovo na mesa ou no
computador, pausando novamente para os coffee breaks; até dar 18:30h
para ir embora o mais rápido possível do entedioso trabalho. Trabalho
depois do expediente, nem pensar! Este, passou a ser o servidor ideal
para a polícia. E se um destes, sei lá, que possui um espírito policial,
se deparar com uma situação e resolver fazer uma prisão. Ao levar o
suspeito para a delegacia, mesmo não tendo agido com abuso algum, mesmo
tendo executado o procedimento de forma legal, ainda pode não contar com
apoio e ouvir um monte de broncas de seu chefe por "estar dando
trabalho".
Não estou dizendo que queria o retorno
daquela polícia antiga e obsoleta que só apurava tudo através da
tortura, no pau de arara. Isso não é investigação. Alguns ainda dizem
que assim se apurava muitos crimes e que só desse jeito é possível
apurá-los. Mas qualquer um que esteja sob tortura vai inventar qualquer
coisa, dizer até o que não fez, simplesmente para se livrar do
sofrimento. É verdade, que em certas situações extremas, repito,
EXTREMAS, a lei é incompetente e ineficaz. E para solucionar isso é
necessário atuar fora da lei. Vai me dizer que você não agiria de forma
ilícita para pegar um criminoso que matasse um filho seu ou estuprasse
sua mulher e ficasse impune? Não se trata de vingança, e sim de punição.
Mas, como eu disse, tratam-se de situações extremas e raras. E mesmo
assim, aquele que o fizer estará correndo o risco de ser
responsabilizado por seus atos. Agora a prática cotidiana de tortura ou
da arbitrariedade policial é sim totalmente condenável.